Solicitação de justiça gratuita pode comprometer direitos básicos?

Atuar no contencioso judicial tem se tornado cada vez mais desafiador, especialmente no que diz respeito à obtenção dos benefícios da justiça gratuita. Observa-se uma tendência nos órgãos do Judiciário em exigir uma análise aprofundada na vida pessoal e intimidade daqueles que solicitam tal benefício, criando uma barreira antes da concessão.

Documentação e exigências excessivas

É frequente a ocorrência de despachos que exigem, de ofício, a apresentação de documentos fiscais, bancários e familiares antes mesmo de qualquer outra etapa do processo, como a análise das tutelas de urgência. Muitas vezes, a parte é advertida de que sua solicitação de gratuidade será negada se não apresentar documentos como declaração de imposto de renda, holerites, extratos bancários e faturas de cartões de crédito, cujos períodos podem variar de acordo com a criatividade do juiz.

Conflito entre exigências e direitos constitucionais

Existem situações em que se requer que os documentos referidos sejam relacionados não apenas ao solicitante do benefício, mas também ao cônjuge ou companheiro, e até mesmo a empresas das quais o solicitante faça parte, o que não deveria ser permitido. Essas exigências trazem à tona a questão da potencial ilegalidade e inconstitucionalidade no que diz respeito a essas práticas, que serão discutidas ao longo deste artigo.

A justiça gratuita é um reflexo do direito ao acesso à jurisdição e da dignidade humana, servindo como uma ferramenta fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e solidária, visando a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Este benefício assegura que aqueles que não têm condições de arcar com os custos do processo possam ter acesso aos serviços da justiça.

Diferente da assistência jurídica gratuita, a qual oferece suporte técnico a quem comprovar a insuficiência de recursos, a justiça gratuita é um instituto com natureza de isenção tributária. Ela é atualmente regulamentada nos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil, sendo os parágrafos 2º e 3º do artigo 99 particularmente relevantes para nossa análise.

O parágrafo 2º do artigo 99 estabelece que o juiz só pode indeferir o pedido se houver provas nos autos de que os requisitos legais para a concessão não foram atendidos. Antes de tal decisão, o juiz deve solicitar à parte comprovantes que evidenciem o cumprimento das condições exigidas. O parágrafo 3º, por sua vez, prevê que a alegação de insuficiência por parte de pessoa natural é considerada verdadeira.

Interpretação e aplicação da justiça gratuita

Não há autorização para que o juiz, sem justificativas adequadas e base legal, exija documentos adicionais para a análise do pedido de gratuidade, especialmente aqueles que tocam na privacidade e intimidade das partes. Embora essa análise vise evitar abusos, ela também deve respeitar o direito à inviolabilidade da intimidade.

Ainda mais grave é a exigência de documentos referentes ao cônjuge ou companheiro do solicitante de justiça gratuita, uma vez que o benefício é pessoal e não deve ser estendido a terceiros que não têm relação com o processo. Assim, não existe justificativa plausível para expor a vida privada desses indivíduos em um processo que não os abarca.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, três recursos especiais estão sendo discutidos sobre a definição de requisitos objetivos para a concessão da justiça gratuita, com um voto inicial que se destaca por discordar da criação de critérios rígidos. O voto do relator sugere que é vedada a utilização de critérios objetivos para a negativa imediata do pedido feito por pessoa natural, além de ressaltar que, quando há evidências que contestem a presunção de hipossuficiência econômica, o juiz deve exigir que o requerente prove sua condição.

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