O panorama legislativo de 2024 no Brasil revela um preocupante cenário no qual mais de um terço dos projetos de lei apresentados conflitua com normas já existentes. Essa situação demonstra que essas propostas foram elaboradas sem considerar a necessidade de inovação e a integração com as políticas públicas em vigor, incluindo decretos e regulamentações do Executivo. De um total de 585 projetos relacionados à saúde pública, 26% foram considerados como situações de contraposição e 11% como sobreposições, conforme indica o estudo Radar Político da Saúde, realizado pelo Instituto de Estudos para Políticas da Saúde (IEPS).
Fatores Contribuintes para os Conflitos Legislativos
O levantamento identificou a sobreposição de normas como resultado de uma série de fatores. Entre eles, destacam-se o enfraquecimento do papel das comissões responsáveis pela avaliação das propostas, a falta de especialização nos gabinetes que lidam com diversos temas simultaneamente, e a dificuldade ou ausência de diálogo com órgãos técnicos, como as assessorias ministeriais. Como resultado, cresce o número de propostas que não fazem sentido, sobrepondo-se ou contradizendo políticas públicas já implementadas. Essa situação é vista como um desperdício tanto de tempo quanto de recursos públicos, sem a devida integração com políticas consolidadas ou a lógica de funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Propostas Legislativas e o Fortalecimento do SUS
O estudo também revela que 40% das propostas legislativas na área da saúde complementam políticas públicas já existentes, mas não promovem um fortalecimento estrutural do SUS. Menos de 10% dos projetos de lei em cada casa legislativa estão direcionados ao aprimoramento estrutural do sistema de saúde. Além disso, esses conflitos não se limitam ao que é tramitação dentro do Congresso; frequentemente, interferem com regras e normas infralegais de órgãos do Poder Executivo, como as que regulam medicamentos de alto custo ou programas vigentes, que são regulamentados por decretos e outras ferramentas diretas.
Conforme explica Júlian Pereira, gerente de relações institucionais do IEPS, “é louvável querer transformar em lei um programa que demonstrou ser eficaz, mas, em alguns casos, esse processo pode engessar medidas que não precisam ser legisladas. Ao fazer isso, as normas tornam-se mais lentas para se adaptarem a novas evidências”.
A Importância do Congresso nas Políticas de Saúde
O estudo ainda sustenta a ideia de que o Congresso Nacional ocupa uma posição central nas políticas públicas, mas ele deve agir como protagonista em aprimorar a saúde pública. O excesso de propostas, no entanto, dificulta essa atuação. “Além de os parlamentares serem porta-vozes das demandas locais, especialmente em momentos críticos como durante a pandemia, é fundamental que o Congresso agilize a aprovação de medidas essenciais para enfrentar desafios, como a criação de planos de emergência”, ressalta Pereira. Ela também recorda da importância da Casa ao aprovar a Lei 8.080, que instituiu o SUS, e as medidas relevantes durante a pandemia de covid-19.
Além disso, o levantamento analisou o direcionamento das propostas e constatou que apenas 19% delas têm foco em populações específicas, evidenciando a baixa atenção a grupos historicamente negligenciados, como negros, indígenas e mulheres. Dos 1.314 projetos analisados, apenas 249 foram classificados como voltados a públicos específicos, sendo que apenas 38 abordam a saúde das mulheres (cerca de 15%). Grupos como povos indígenas e a população em situação de rua continuam a ter uma presença mínima, representando menos de 3% do total de propostas. A publicação conclui que “a baixa prioridade legislativa para essas populações contrasta com as desigualdades estruturais que impactam diretamente suas condições de saúde”.